Borboletae, um reino colorido por Matilde Carvalho, Marta Carvalho, Valéria Spivocenco, Tiago Sousa
Era uma vez, há muito, muito tempo, uma floresta muito distante, onde havia um reino chamado Borboletae. Neste reino, as borboletas possuíam as mais diversas e vibrantes cores, sendo as mais coloridas as mais formosas e bonitas Quando a Rainha anunciou a sua ‘gravidez’, o povo explodiu de felicidade. Finalmente, teriam uma herdeira para dar continuidade ao próspero e poderoso reino que tanto veneravam! A pequena Joana, que ainda era uma larva, fora mimada com as mais diversas e extravagantes riquezas, tendo sido preparada cautelosamente para o seu encasulamento, após o qual se tornaria na encantadora princesa que o seu povo amaria. Certo dia, quando o Rei visitava os aposentos da princesa Joana, viu um movimento. Os olhos do Rei duplicaram de tamanho e, de repente, saiu do quarto a gritar:
- Rainha, venha cá! Imediatamente! Com o coração palpitante e a mente baralhada, a Rainha, pensando que a sua filha corria perigo, voou velozmente. Mal entrou no quarto, viu uma borboleta de grandes asas tingidas de tons cinzentos, totalmente diferentes do exuberante carmim da sua mãe e da turquesa hipnotizante do seu pai. A Rainha, sentindo-se fraca, apontou a pata trémula à criatura que tinha à sua frente e exclamou:
- Com essa cor, não podes ser nossa filha! Neste reino, somos todos coloridos! Tens dois segundos para abandonar o palácio!
A princesa Joana saiu do seu quarto, soluçando e engolindo as próprias lágrimas, sem sequer olhar para trás. Atravessou o corredor, onde os guardas mantinham as suas posturas retas e corajosas, e ainda assim conseguiu notar os cochichos de alguns deles. Após passar pelos grandes portões do palácio, admirou-se com o imenso grupo de aldeões que rodeava o paço real.
Não davam qualquer sinal de piedade, não contendo os seus olhares repletos de desdém e os seus comentários tingidos com as palavras mais cruéis que Joana alguma vez ouvira. Nunca tinha passado pela mente da pobre princesa que algo tão miserável lhe pudesse acontecer! O mesmo povo que lhe mostrara anteriormente tanta ternura e respeito era o mesmo que agora a odiava e desprezava, apenas pelas suas asas tingidas de tons cinzentos. Com o seu pequeno coração tubular a palpitar incessantemente e o horizonte embaçado pelas lágrimas de cristal que caíam como cascatas dos seus olhos, a pequena borboleta voou. Voou sem rumo, nem pensamento, nem sequer notando que já ultrapassara os altos muros de tijolo que protegiam Borboletaee entrava no Bosque Proibido. Foi então que Joana suspirou. Não sabia se era um suspiro de alívio ou apenas aquele que continha desde que vira, pela última vez, a sua mãe. Enxugou a água que lhe ensopava os olhos e, finalmente, dedicou tempo a analisar o espaço à sua volta.
Os troncos das árvores eram escuros, mais negros do que as nuvens num dia de tempestade, e estendiam-se tão alto que podiam atingir essas mesmas nuvens. Ainda assim, a cena que Joana presenciava era muito mais assustadora do que as meras trovoadas que rompiam os céus. Os ramos estavam nus, não havia sinal de folhas ou flores. A borboleta perguntava-se se haveria sequer alguém que pudesse sobreviver nestas extremas condições. Ao observar um pouco mais, rapidamente se apercebeu do sítio onde se encontrava. Havia escutado, atentamente, as mais variadas histórias e mitos sobre esta zona da floresta, e lembrara-se de que fora avisada de que nunca, fosse qual fosse a situação, deveria entrar ali. Era ali que residiam as mais perigosas e repugnantes criaturas do mundo, no Bosque Proibido. Pelo menos, era o que a sua mãe lhe havia contado quando ainda era uma pequena larva. Lembrar-se dos pais não era algo que Joana estivesse pronta para fazer, pois assim que a imagem do carmim reluzente da mãe surgiu na sua mente, a borboleta começou a pestanejar, evitando que mais lágrimas caíssem. Mais uma vez, olhou para as suas próprias asas. Eram pintadas de tons cinzentos em toda a sua extensão, nas mais delicadas curvas e cantos, até se enrolarem nas pontas. Os tons das suas asas não eram uma característica de que ela se envergonhasse. Para ela, eram tão únicas e elegantes quanto as asas turquesa de seu pai, ou as asas carmim de sua mãe.
A borboletinha sobressaltou-se quando ouviu um estrondo atrás de si. Com as asas estremecendo, Joana virou o corpo lentamente para a direção do ruído, onde, para sua grande surpresa, se deparou com uma borboleta muito semelhante a si. À sua frente, dois olhos comprimidos analisavam-na atentamente. Algum tempo depois, fez um gesto com as asas, algo que Joana interpretou como um chamamento, e, poucos segundos depois, surgiram dezenas de borboletas, todas elas com asas de tons escuros.
Incapaz de se mover com toda a atenção sobre si, a princesa susteve uma vez mais a respiração, sentindo-se como uma vulnerável e fraca presa, no meio de predadores famintos. Com a voz trémula, Joana questionou a identidade destes seres tão semelhantes a si. - Somos as habitantes deste bosque. Mas, aqui, a intrusa és tu e, por isso, sugiro que te apresentes - exigiu uma delas. - O meu nome é Joana, sou a princesa de Borboletae… - fazendo uma pequena pausa antes de deixar a sua cabeça pender. - …ou era a princesa de Borboletae. Não demorou muito tempo até que os dois lados se unissem após partilharem as suas histórias. Tal como ela, estas borboletas tinham sido consideradas, por quem quer que fosse, meras criaturas repulsivas, seres inúteis e indesejáveis, até que encontraram, finalmente, um lugar onde se sentiam queridas. E esta era a vez de Joana.
Assim se passaram os dias na sua nova vida. A princesa estava muito feliz, neste novo local, e sentiu que se tinha integrado bem com as suas novas companheiras. Entretanto, quer o Bosque Proibido quer Borboletae seguiam as suas vidas pacificamente.
Porém, essa felicidade não duraria muito tempo. Uma semana após a afiliação de Joana às borboletas do Bosque Perdido, receberam notícias de que uma horrível tempestade vinha a caminho. Joana e as suas companheiras prepararam-se minuciosamente, criando abrigos a partir de folhas e de pequenos galhos. O vendaval afetou a floresta inteira, atingindo cada canto e parte da imensa zona. O céu rugia furiosamente e os relâmpagos iluminavam o bosque inteiro. Joana, dentro do seu abrigo, notou uma cor alaranjada à distância e estranhou. Neste tempo cinzento, como seria possível estar ela a ver tons de laranja e vermelhos tão vivos?
- Vejam, vejam! - exclamou uma das borboletas do bosque - Borboletae está a arder!
Ao ouvir tais palavras, Joana sentiu o mundo a desmoronar à sua volta. Não podia ser! Ela tinha de salvar os seus pais de imediato!
No entanto, quando tentou voar para resgatar os pais, sentiu diversas patas prendendo-a ao lugar onde se encontrava. A princesa gritava e chorava, suplicando que a deixassem ir. Estava completamente desnorteada e nada mais lhe passava pela cabeça senão a ideia de ir ao encontro do Rei e da Rainha. Ainda assim, as suas companheiras puxavam-na de volta, implorando que não fosse ao encontro do perigo, pois poderiam perdê-la na tempestade ameaçadora.
Passou-se, assim, a noite de vendaval, com os choros desesperados de Joana e o murmúrio das promessas das outras borboletas, comprometendo-se a ir a Borboletae, na manhã seguinte, quando a tempestade cessasse.
Quando surgiu o novo dia, Joana foi diretamente a Borboletaecom as poucas borboletas do Bosque Proibido que sobreviveram. Estavam perto das muralhas do reino quando encontraram a pequena população sobrevivente, arrastando-se nas ervas queimadas. Por cima, voavam pássaros e Joana jurou que conseguia escutar os seus estômagos roncando, famintos. Não demorou muito tempo para que a princesa avistasse os pais, e, para sua desolação, estava uma chapim-real no horizonte. A borboleta desatou a bater as asas, deslocando-se velozmente até aos pais, cobrindo-os com o seu corpo escuro. A ave, após deixar de ver as cores vibrantes das suas presas, foi-se embora, desapontada.
- Minha filha! Salvaste-nos! - exclamou a Rainha, atirando-se para as asas da princesa.
A pequena família abraçou-se fortemente e, no meio de súplicas por perdão, declarações de amor e de promessas, o Rei anunciou que Joana seria coroada Rainha de Borboletae, pela coragem que demonstrara ao salvar os seus monarcas.
E assim se fez.
Joana liderou um reino próspero e poderoso por muito tempo, um reino onde toda e qualquer cor de asas era venerada e percecionada como formosa, pois essa era a riqueza do seu reino: a variabilidade intraespecífica, a matéria-prima a partir da qual a seleção natural atuaria. A nova rainha era vista como símbolo de coragem e de bravura e respeitada por onde quer que voasse, sendo conhecida desde os reinos vizinhos até aos reinos mais longínquos. Esse reconhecimento perdurou durante muitas gerações, pois a variabilidade intraespecífica do seu reino permitiu que este se adaptasse sucessivamente às novas condições do meio. Foi assim que a linhagem das borboletas de Borboletaenão se extinguiu. Pelo contrário, as borboletas evoluíram, chegando até aos nossos dias um pouco diferentes do que foram no passado, mas igualmente deslumbrantes!