A Lenda dos Tatus por Diana Geirinhas e Leonor Fernandes
Há muito, muito tempo, existia um reino longínquo, chamado Kituky, conhecido pela colossal relação de amizade entre a realeza e os tatus, animais doces e divertidos, com carapaça, de todos os tamanhos e feitios, com unhas gigantes e sempre prontos a ajudar quem estava em apuros. Neste reino, a vida sempre fora uma delícia - de manhã, o povo trabalhava sempre com um sorriso no rosto, e, à noite, reuniam-se todos, ricos e pobres, lindos e feios, na praça principal, onde se dançava, comia e bebia até o sol os cumprimentar de novo. Era o lugar ideal, de corações alegres e rostos sorridentes, até àquele fatídico dia… o dia em que o sol tardou a nascer para não testemunhar o adormecimento precoce da filha mais nova do rei, Astrea. Com os seus cabelos pérola e olhos brilhantes como o mar de outono, Astrea sempre fora a estrela mais brilhante do céu noturno e a flor mais cheirosa do jardim de todo o Kituky, até a vida a atraiçoar e ser abalada por uma doença de origem desconhecida. A única forma de a salvar de um destino trágico era colocar sobre o seu coração a Flor de Mil Pétalas, uma planta mágica, rara, capaz de curar qualquer maleita.
O Rei, comandado pela tristeza, procurou, em cada canto conhecido e desconhecido do Mundo, a salvação da sua filha adorada. Após um ano, nove meses, quatro dias e três noites, descobriu que a planta milagrosa crescia no topo do monte PiriPiri, o local mais temido de todo o Universo. Rapidamente ficou claro para o Rei, desesperado, que chegar junto dessa flor não era tarefa exequível para humanos. Foi então que os três mais fiéis amigos da princesa se voluntariaram para tentar salvar a vida da sua inestimável amiga. O Arcus, o Zelo e o Odin eram os tatus de companhia de Astrea e as almas mais puras de todo o Kituky. Arcus era um tatu de grande porte, cor de laranja, e um sorriso travesso, que não enganava ninguém. Este amigo maroto era o mais esperto de todos, mas tinha um mau humor de meter medo ao mais corajoso dos homens! Já Zelo, apesar de não ser tão esperto, era claramente o galã do grupo. Grande, castanho, cor do chocolate, e com um sentido de humor de descascar a rir, não havia uma tatu viva que não desejasse namorar o bonitão. E, por fim, havia Odin! Odin, castanho como a madeira e mais pequeno do que uma bola de futebol, não era certamente o mais carismático, mas compensava a ausência dessa característica com o seu coração de ouro e uma força de vontade inabalável.
Na manhã seguinte, partiram, então, ao primeiro raio de sol, em direção à única esperança do reino. O caminho, inicialmente, até foi tranquilo - a terra era macia e o sol agradável, o tempo ideal para os três amigos fazerem o que faziam melhor: discutir. O primeiro problema chegou ao anoitecer, quando alcançaram a terra Lamalui, famosa pelos seus terrenos lamacentos. Qualquer tatu com bom senso sabia o profundo desafio que a terra de Lamalui representava, já que a leste se encontrava o pântano Lematter, onde a maior inimiga de tatus se banhava todo o dia - Khan. Revestida de um pelo dourado brilhante, coberto de pepitas de chocolate negro, e com uma cicatriz a cruzar-lhe o olho esquerdo, Khan era temida pela sua personalidade cruel e oportunista. De facto, qualquer criatura inteligente sabia que Lamalui era uma terra proibida, devido aos seus inúmeros perigos, mas os nossos heróis, completamente alheios ao erro fatal que haviam cometido, entraram na “toca do lobo” com um grande sorriso no rosto. Até que…
- Olha, olha, olha, o que é que temos aqui? Um regalo para o dente, só pode! - disse Khan, com voz babada. - Ai, meu Tatu do céu, onde raio é que nós estamos? - questionou Zelo, completamente desamparado. - Estamos em Lamalui, suponho - explicou Odin -, mas não faço a mínima ideia do que é que um jaguar faz aqui! - Oh minhas grandes baratas! - gritou Arcus, em desespero - Lamalui é mesmo ao lado do pântano Lematter, a piscina privada do mais feroz dos felinos, a jaguar Khan. Se vocês têm algum amor à vossa vida, ENROLEM-SE!!!
Rapidamente, os três amigos se enrolaram que nem bichos-de-conta, numa tentativa angustiada de se protegerem. Enquanto os dois tatus castanhos, Zelo e Odin, facilmente se camuflaram no meio da paisagem lamacenta, o pobre Arcus não teve a mesma sorte. Por mais enroladinho que o animal estivesse, ninguém podia ficar indiferente àquela carapaça cor de laranja que mais fazia lembrar uma gema de ovo acabado de estrelar. Subitamente, Khan, apenas capaz de ver Arcus, pressionou as suas enormes patas contra o solo e, num gigante salto rasgado, abocanhou Arcus, que, como uma rajada de vento, desapareceu no horizonte - assim, se deu a seleção natural! Desconfiados, os dois amigos olham em volta ao não sentirem o ar ameaçador de Khan a intimidá-los. Achando que podiam relaxar, Zelo e Odin desenrolam-se, desejosos de partir. Simultaneamente, o choque toma conta deles, não havendo espaço para mais nada, no seu frágil coração, para além de dor.
- Como é suposto continuarmos assim? O nosso companheiro acabou de nos abandonar! - chorou Zelo, completamente perdido. - Eu sei que dói, mas a nossa princesa precisa de nós e Arcus deu a sua vida por isto, não vamos deixar que o seu esforço seja em vão! - encorajou Odin, tentando ser forte, apesar da chuva de cristais que lhe enchia os olhos. - Tens razão, Odin, a tristeza estava a cegar-me! Obrigado por me fazeres ver o que é verdadeiramente importante! - suspirou Zelo, tentando acalmar-se. - Vamos lá salvar a princesa! E assim, os nossos heróis, de coração despedaçado, decidiram recuperar energia para que, no dia seguinte, embarcassem de novo em busca da Flor de Mil Pétalas. A manhã chegou, a noite caiu e sete dias se passaram, até que, finalmente, no final do sétimo dia, Zelo, entusiasmado, exclamou: - Odin, Odin, olha o que está lá ao longe! - Oh, meu Tatu Divino, é o monte, é o monte PiriPiri! Nós vamos conseguir, Zelo, é só mais um pouco, estamos quase lá! - respondeu Odin, sem se deixar desencorajar pela imensidão do monte, cujo topo tocava nas nuvens brancas como algodão-doce.
E, de cara alegre, os dois amigos seguiram caminho pelo monte acima, à procura da cura da sua amada princesa. De repente, a ideia de poderem voltar para o seu reino adorado encheu-os de tanta alegria e esperança que os dois tatus sorridentes começaram a cantar: - Em direção à flor, vamos com amor… - …Para Astrea salvar e a maleita afastar - Enquanto Kituky espera… - …E o seu rei desespera… - …CARREGANDO LEMBRANÇAS E UM REINO DE ESPERANÇAS!
Fizeram, assim, metade do seu caminho trauteando, até que, quando as árvores do solo já pareciam formigas, um percalço aconteceu. À sua frente, o chão de terra pregou-lhes uma partida, transformando-se em areia, todavia, o que os esperava não era uma areia qualquer, mas sim areia movediça! Os tatus já tinham ouvido falar deste “monstro”, que engolia qualquer um, um “monstro” que era capaz de sentir o medo de quem ficava preso entre os seus dedos, divertindo-se, comendo os mais medrosos, um monstro que as gentes do reino de Kituki chamavam Gaki. Apesar de Arcus lhes ter sempre dito que não deviam recear o monstro, por ser simplesmente um fenómeno natural, que acabava por assustar os Homens, ele nunca se tinha dado ao trabalho de lhes contar como é que Gaki podia ser derrotado.
- E agora, Zelo, que fazemos? - pergunta Odin, sentindo a sua esperança a desaparecer a cada segundo. - Eu vou. - Não vais nada! A não ser que tenhas uma razão lógica para quereres ser comido por Gaki... Tu vais mas é ficar no teu lugar! - contesta Odin, irritado com a inconsciência de Zelo. - Mas eu tenho uma boa razão! Olha para ti, és pequeno e lingrinhas, Gaki comer-te-ia num abrir e piscar de olhos! Eu, pelo contrário, sou grande, forte e robusto, duvido muito que Gaki me consiga comer. Além disso, é como tu disseste, não vamos deixar que o esforço de Arcus seja em vão! Se tudo o que basta para conseguirmos salvar Astrea é ultrapassar este monstrinho esfomeado, então podes ter a certeza de que eu vou conseguir! - Eu entendo o teu lado, mas tens de perceber que o teu plano não faz sentido. Vá lá, vamos sentar-nos um pouco e definir uma estratégia, ok? Zelo? … Zelo! Bastou Odin desviar o olhar por um segundo, para Zelo marchar, confiante, em direção ao que parecia serem cereais de aveia inofensivos.
No entanto, mal a pata de Zelo tocou na areia, começou a afundar a uma velocidade assombrosa. Indignado, Odin gritou: - SEU BESOURO IDIOTA! Não sabes que os corpos mais densos se afundam? Ai, mas não te preocupes, vou já ajudar-te…! Dito isto, Odin salta também para as areias movediças, determinado a salvar o amigo. À medida que Odin avança mais e mais pelos grãos de areia, fica agradavelmente surpreendido ao notar que Gaki não o devorava. Pondo de parte esta estranha aptidão, Odin volta a focar-se em Zelo confirmando que o corpo do amigo está cada vez mais submerso. Corre, então, em seu auxílio, escavando ao redor com todas as suas forças. Mas tanto Odin como Zelo sabiam que nenhum corpo capturado por Gaki tinha conseguido escapar de seus dedos. Era uma luta inglória, era um desperdício de tempo, era o fim de Zelo. Apesar disso, Odin não parava de lutar, tendo noção de que era incapaz de lidar com a partida de mais um dos seus companheiros.
- Um dia destes, tens de me ensinar como fazes esse teu truque de flutuar nas areias… - sugere Zelo, com uma lágrima a escorrer-lhe pela face - mas agora vai, não deixes a princesa continuar à espera. - Não… NÃO! Eu não vou desistir! Tu não me vais fazer isso, nós vamos ultrapassar isto juntos! Só mais um pouco, eu consigo… - replica o tatu cansado, com rios de lágrimas, a consumi lo. Contudo, nem a força de vontade toda do Mundo pode ganhar à seleção natural. Odin, já só vendo areia, após apanhar todos os cacos do seu coração desfeito, decide, então, seguir caminho. Ele tinha um trabalho para concretizar e ia acabá-lo.
Sem descansar, o tatu andou sem mais nada em mente a não ser a sua missão. Os dias passaram, o tempo mudou, e o pequeno tatu finalmente conseguiu regressar ao reino, transportando na sua carapaça e com todo o cuidado a bela e preciosa Flor de Mil Pétalas. Rapidamente, o monarca de Kituky, desejoso de recuperar a sua filha, apressou-se a chamar o tatu estafado, assim que foi informado do seu regresso. Mal Odin entrou no quarto de Astrea, a flor foi-lhe retirada das patas e os médicos da corte rapidamente se dirigiram à cama onde a princesa repousava.
Mas antes que a flor pudesse ser colocada sobre o coração da menina, Odin falou com uma voz irreconhecível, que já não era uma voz doce, era uma voz vazia e sem cor, era uma voz melancólica: - Ninguém toca na princesa, acho que ganhei esse direito… Surpreendidos, os médicos reais apressaram-se a dar a Odin a planta mágica, que ele pôs sobre o coração de Astrea.
Lentamente, a cor despertou nas faces da princesa e os seus olhos abriram-se gentilmente, revelando o rosto inocente há muito perdido. Olhando em volta, a princesa, agitada, ao ver-se rodeada de caras alegres e ao aperceber-se de que a Flor de Mil Pétalas, a planta mais rara de todo o Mundo, estava pousada no seu peito, indagou, incrédula, numa voz ainda fraca: - De onde é que isto veio? Desde os inícios dos tempos que não houve uma única alma viva capaz de a colher… Quem foi? - Fomos nós, os teus tatus de companhia. É tão bom ter-te de volta, princesa Astrea! - Odin! Muito obrigada, deve ter sido tão difícil!! Aposto que passaram o tempo todo a discutir, é a única coisa que vocês sabem fazer! Enfim, onde está o Arcus? E o Zelo? Assim que esta pergunta saiu dos lábios de Astrea, a sala ficou silenciosa e os olhos de Odin escureceram. - El… eles… eles não sobreviveram… mas não faz mal - acrescentou Odin, num esforço para não magoar a princesa -, não tens de ficar triste, é como o Rei sempre diz “Basta um vencer para todos sairmos vitoriosos”! Eles ficaram para trás para que tu pudesses melhorar, para que Kituky pudesse ser grande outra vez. Além disso, eles passaram os últimos dias da sua vida a fazer o que mais gostavam: ajudar-te! Imediatamente, a princesa o envolveu, num abraço caloroso, e Kituky renasceu das cinzas.
- E foi a partir desse dia que finalmente se compreendeu o que já se observava há várias gerações: os tatus pequenos e castanhos sobreviviam mais tempo e tinham mais descendência do que os muito grandes ou muito coloridos. Foi de tal modo que, a partir de certa altura, passaram só a existir tatus pequenos e de cor castanha, a seleção natural favoreceu-os, tendo permitido que continuassem a zelar pela prosperidade de Kituky - contavam os tatus idosos aos seus netos. Esta é a Lenda dos Tatus que Darwin gostaria de ter contado aos seus netos!